É o fim da espontaneidade!
Infelizmente nos tornamos curadores obsessivos da nossa própria existência.
“Nunca na história da humanidade, o ser humano foi tão pressionado a performar o tempo inteiro. A noção de espontaneidade se tornou praticamente uma ficção. A gente precisa o tempo inteiro entregar resultado, produção, ideia, conteúdo, ação, corpo. E toda hora a gente sente que o tempo escorre pelos nossos dedos, a gente não tem mais o tempo que a gente gostaria de ter pra fazer todos esses papéis sociais acontecerem.” - Alexandre Coimbra Amaral
Eu não lembro qual foi a última vez que eu tenha lido (no caso, assistido) algo tão forte, tão atual e tão identificável, como essa fala do psicólogo e escritor Alexandre Coimbra.
Nós nos tornamos prisioneiros da performance digital.
Já disse aqui algumas vezes o óbvio: o quanto viver de conteúdo pode ser cruel. Observar o alcance flutuar a medida que big techs orquestram, ver a relevância oscilar ao passo que trends & aesthetics surgem; lamentar que amizades minguam na velocidade que algoritmos são analisados. É tudo bizarro e, por ser novo, ainda sem manual de instrução.
Olha, até outro dia havia um dedo de privilégio reclamar de trabalhar com internet, ter que entregar um publi com combo de reels e três stories e torcer pro conteúdo ser entregue com sucesso, mas agora… TODO MUNDO TEM QUE PERFORMAR. Então o caos está instalado na sociedade como um todo.
Além do influenciador ter que performar, os profissionais, das mais diversas áreas, também tem que performar. Dentista? Manicure? Corretor de imóveis? Não tem exceção, tem que ter performance, entrega, conteúdo. Está cada vez mais difícil encontrar um profissional que consiga viver na santa paz do offline.
NÃO DÁ MAIS PRA VIVER À PAISANA NA WORLD WIDE WEB.
Se você vive de maneira casual, logo o vizinho de arroba, aquele seu amigo emocionado, parente ambicioso, verão dois - ou três - cifrões no seu feed e questionar o motivo pelo qual você vive à margem da nova sociedade digital.
Como bem previu Caetano Veloso em 1991, “alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”
Na esteira desse vídeo do Alexandre, vi um tktk de uma moça repercutindo justamente essa pressão e ela quotou muito bem algo como “curador obsessivo pela própria existência”. Nossa vida basicamente se fundou no profissional e pessoal pra um digital só. Tudo, é claro, com a mesma moldura de canva e a mesma trilha sonora viralizável. Outro dia vi até um social media recomendando “PACKS DE EMOJI” pra sua legenda engajar mais.
Estão simplesmente selecionando figurinhas pra você colocar na sua legenda (!!!!). Por favor, Alexa, me desconecte dessa rede social imediatamente. #fail
Essa ideia de calcular gestos, manipular ações, tudo se transforma em investimento no nosso capital humano, na nossa vida privada que se mistura à real. Daí você segue sua médica e uma hora ela tá recomendando a vitamina do momento e na outra ela tá compartilhando a marmita dela com frango e batata doce. Fantástico, mas caótico.
Tudo hoje em dia tem que não apenas performar, mas essa performance precisa vir atrelada à mercantilização da nossa vida. Tudo tem que virar números e numerário$.
Veja bem, não há rigorosamente nada de novo nisso, mas está totalmente disseminado na nossa sociedade e, veja bem de novo, raramente o conteúdo vira dinheiro, mas quase sempre vira ansiedade. E como bem disse o Alexandre, “Ansiedade é resultado do tensionamento da vida”, ou seja, estamos perdidos.
Inclusive, estava hoje mesmo conversando com minha dentista sobre a vida e o tal bruxismo recém descoberto (falei sobre no post da semana passada) e ela disse que nunca viu tanta gente com bruxismo e disse que uma das maiores razões é justamente o stress. Claro, estamos mais estressados e ansiosos que nunca.
Na conversa ela lembrava, por exemplo, que uns anos atrás a gente tinha até 16h pra pagar uma conta, fazer um TED, um DOC e, dependendo do valor, demorava até dois dias pra entrar. Sem pressa! Hoje em dia não, o que em parte é maravilhoso, mas no geral nosso cérebro está funcionando 24/7, seja pra pagar conta, pra se estressar, pensar, esperar, ansiar… performar. Nosso corpo não foi planejado pra isso.
O ano em que decidi cuidar de mim... e mesmo assim não foi suficiente
Eu sou daquele tipo de pessoa que, se encontro um amigo na rua e ele pergunta “tá tudo bem?”, e eu, mes…
O fim do genuíno
E nessa busca pela performance, a tal da autenticidade ficou pelo caminho. Não se faz mais nada de forma genuína. Não se faz mais nada por fazer. O fazer sem calcular não existe mais. O visceral, o sem motivo ou propósito estão em falta. Não tem mais nada espontâneo.
E aí entra um outro post que fiz ano passado aqui na Newsletter e que virou vídeo no meu Instagram sobre os tais hobbies de baixa manutenção, lembra?
No post falava o quanto é importante pro nosso cérebro, saúde e bem-estar ter um hobby, algum passatempo que não seja atrelado ao seu trabalho, que não torne uma obsessão ou algo com foco em fazer dinheiro. Simplesmente algo genuíno, mundano e que ocupe nossa mente.
Mundinho dos hobbies de baixa manutenção
O meu principal hobby da vida adulta atendia pelo nome de ESCREVER UM BLOG. Falar sobre moda, celebs e tudo do adorável mundo pop. No início, escrevia quando ninguém estava lendo, depois o meu quórum…
Acho que nessa seara da performance, a gente também fica obcecado em não apenas fazer dinheiro com tudo mas também competir em ser sua melhor versão, bater metas, entrar na esteira da comparação… sufocante!
Na real às vezes só precisamos do ORDINÁRIO, do comum, de ser quase que insignificante, despretensioso e deixar a vida fluir sem muito método, mas ainda com a intenção de ser feliz. É tão difícil assim?
Como diz a absoluta Fernanda Torres, “a vida presta” e daí acrescento, às vezes é a gente (sociedade digital) que estraga com ela.
Beijos e boa semana!
Thereza
Eu, uma ilustre desconhecida que tem meia dúzia de seguidores já me percebi não tendo espontaneidade nem em ferias. Quantas vezes numa viagem eu pensei nos ângulos que a foto ficaria melhor pra ser postada? E detalhe: eu não posto mais fotos em feed há uns 2 anos rs eu sinto que de um lado estão aqueles performando criar conteúdo e, do outro, nós consumidores performando interesse, num grande espetáculo de rolar o feed infinito ao som de Benson Boone
reflexão excelente, The!
tenho pensado e começado muitos hobbies, e o fato de não conseguir registrar enquanto faço me traz frustração (!) pq pra que fazer se ninguém vai ver? tô bugada!