O poder da troca e a força da devolução
“Lei Adriana Calcanhoto” e o direito de se arrepender?!
- Oi, me chamo Thereza e sou viciada em trocar.
- Oi, Thereza!
Eu não sei qual foi o start do meu gatilho pro vício em compras em geral (já relatei aqui nesse post de 2022 do Fashionismo). Não sei se foi a quarentena ou a maternidade, mas esse hiperestímulo de troca também se dá pelo fato da compra online ser meio no escuro. Há também a minha oscilação de peso que me acompanha há uma década; sem contar questão da dopamina liberada com a comprinha, daí quando a gente vê, ops, comprou!
Mas a alegria passa e a compra fica.
Semana passada comprei uns óculos de grau (ainda falarei sobre essa minha nova era que, não ironicamente, estimulou um outro patamar de consumo) e meu marido, que me conhece como ninguém, logo me alertou (ok, zoou): “você sabe que depois que colocar o grau na lente já não vai mais poder trocar né rs?!” E logo eu me senti perdida e pelada sem a maravilhosa sensação do PODER DA TROCA.
Corta pra outro dia e um alerta que recebi da minha Alexa (eis uma excelente compra): “seu Airpod Max cor Cinza Sideral no valor de R$4.490 ESTÁ A CAMINHO.”
É O QUE?
Existe um fone de ouvido no valor de quatro mil reais?
E EU COMPREI ELE??????????
Ok, eu compro demais, mas não a ponto de gastar uma passagem pra NY (minha métrica de consumo) num fone de ouvido, sendo que o meu de fio vintage supre meus anseios musicais muito que bem.
Essa compra ainda é um mistério, ou alguém da casa clicou sem querer nos desnecessários anúncios da Alexa de tela (que eu já desativei, mas ainda aparecem e, nota, essa Alexa fica no alto da estante e minha filha não alcança), ou teve algum bug e essa compra foi do nada (absurdo a Amazon não pedir cvc do cartão). E, veja bem, um produto que nem deveria estar lá, pois, baseado no meu algoritmo na Amazon, só compro massinha, livros e whey protein, mas estava. E eu, no minuto que recebi o alerta, já cliquei pra DEVOLVER o produto.
E aí que entra um outro fantástico universo de consumo: o da DEVOLUÇÃO. Quando postei esse caso no Twitter, muita gente falou “ah, é só devolver”. Sim é só devolver, mas também é sabido que uma devolução demora até 2 faturas para ser estornada e, não sei vocês, mas um fone de ouvido à vista no valor de R$4.500 na fatura é inesperado sim rs. Bom, essa questão burocrática ainda está sendo resolvida entre Amazon, Visa e mim, mas vamos falar de devolução offline?
Outro dia estava vendo um Reels divertido do Theodoro e ele propôs a criação da “Lei Adriana Calcanhoto” rs para a implementação de devolução de produtos comprados em lojas físicas e gostaria de apoiar a nobre causa amplamente difundida no comércio estadunidense.
“Estima-se que o volume de compras devolvidas no comércio eletrônico americano totalizou US$ 203 bilhões em 2022.” - Insider Intelligence
Veja bem, de acordo com o ARTIGO 49, quando você compra online aqui no Brasil, você tem um período determinado por cada loja (geralmente 7 dias, mas tem comércio que oferece até 30) para devolver, pura e simplesmente devolver.
Se arrependeu, não coube, não gostou, desistiu… devolve! VOCÊ TEM O DIREITO DE SE ARREPENDER.
Só que em loja física não existe essa opção, você pode trocar em até 30 dias e sinta-se satisfeita. E, vale dizer, não é uma obrigação da loja, é basicamente uma cortesia que te fazem.
O pleito do Theodoro é que tal artigo 49 também seja executado em lojas físicas de todo o país e eu apoio… Ok, Kim Kardashian, there's people that are dying, a newsletter de hoje é pra falar como a cultura da devolução e do “FREE RETURN” tá meio que quebrando muitos comércios americanos e deixando tantos outros de cabelo em pé.
Pelo direito de devolver
Enquanto no BR a devolução só ocorre em compras online, nos EUA você piscou e não gostou… pode devolver. Na Bottega ou na Birosca, você desistiu e pode devolver. Comprou online e se arrependeu? A logística reversa é por conta da marca e o máximo que você vai fazer é ir ao Post Office deixar a caixa e ter o dinheiro de volta no credit card, isso quando não agendam uma visita para buscar a devolução no conforto do seu lar.
Agora sabe por quem essa tal cultura foi implantada? Pela própria Amazon, quando em 2005 introduziu pela 1a vez o frete grátis e devoluções grátis para membros do seu serviço de assinatura Prime. Há quase 20 anos ela redefiniu as expectativas dos consumidores sobre como eles compravam online, numa época em que pouco se comprava esse gesto definiu uma geração.
De repente, marcas e varejistas de todos os tamanhos se sentiram compelidos a permitir que os clientes devolvessem itens indesejados sem custos, ou arriscassem perdê-los para a ultraconveniente “loja de tudo”.
Ok, isso existe há anos, mas com o boom do comércio digital e do excesso de consumo pandêmico: essa cultura da devolução EXPLODIU. O que se realizou é que devolução gratuita incentiva um comportamento dispendioso do consumidor, principalmente o ato de comprar a mesma peça em vários tamanhos e ficar com apenas a que serve.
Tipo, “ah se eu não gostar, eu devolvo, eles pagam essa ~burocracia mesmo”. Sem contar as outras ~mutretas de comprar > haul > mostrar > usar > devolver > comprar > looping eterno do capitalismo desenfreado.
“Em média, os retornos de um ecommerce chegam a 7% das vendas totais, agora se ele for do segmento de moda, pode chegar de 20 a 30%”
Um detalhe que faz diferença
Sempre leio matérias no Business of Fashion falando o quanto a questão do “Free Return” é um problemão para grandes, médias e pequenas empresas e os dados impressionam.
Olha esse dado do período de festas dos EUA (aka Thanksgiving, Black Friday, Natal): A UPS - serviço de entrega americana - disse que lidou com mais de 60 milhões de dólares de devoluções nesta temporada, 10% a mais do que no ano passado e um novo recorde. Os varejistas pagarão mais para receber esses pedidos de volta, já que as transportadoras aumentaram os custos de envio.
Por fim, e o maior problema: quando esses pedidos indesejados chegam ao depósito, o processamento de devoluções é notoriamente intensivo em mão de obra, e o setor de logística está enfrentando uma escassez de trabalhadores aptos. Tipo dá MUITO mais trabalho - e erro - levar de volta esse produto à sede. Pensa numa mala extraviada, só que muito mais complicado. Agora sabe o custo médio por item para os varejistas adquirirem e processarem as devoluções? US$ 33.
Nos EUA, no ano passado, 17,6% das mercadorias compradas on-line foram devolvidas aos varejistas, em comparação com apenas 10% das compras físicas. Cada devolução pode incorrer em taxas de envio, custos de processamento da mercadoria e perdas em produtos que não podem ser revendidos, tudo isso pesa na lucratividade de uma empresa. E veja o fator quarentena transformando essa questão: atualmente 17,6% das mercadorias são devolvidas, enquanto em 2019, apenas 11%.
Um exemplo é a gigante Revolve, multimarca de roupas femininas e que faz sucesso por seu marketing agressivo nas redes sociais. Sabe qual é a taxa de retorno da empresa? No último trimestre de 2023 foi de 60%!!! Tem noção o que é isso para um comércio? Preocupante, pois não basta vender, tem que garantir, esperar, torcer, especular, esperar mais…
Os retornos geralmente estão no topo da lista de cortes de custos. Antes, vistos como inevitáveis, eles são cada vez mais compreendidos como uma despesa a ser gerenciada como qualquer outra. Esse tem sido um grande desafio para o varejo e tese de estudo para muitas empresas.
No caso da marca californiana, eles implementaram uma série de medidas desde o ano passado que, segundo ela, começaram a fazer efeito. Eles foram no cerne da questão, pois sabe qual é uma das maiores razões pra troca? A roupa que não cabe, a tabela de medidas mal feita, a grade que não é padronizada, muitas questões que não garantem uma peça minimamente funcional. Daí a Revolve vem buscando melhorar a orientação de tamanho que fornece aos compradores.
Em uma pesquisa recente, a empresa descobriu que 2/3 das devoluções estavam relacionadas ao tamanho e ao ajuste. Para resolver o problema, ela introduziu recursos como guias de ajuste de produtos, uma ferramenta de comparação de tamanhos para fornecer recomendações de tamanho e experimentação virtual. Ela também introduziu vídeos de produtos que facilitam o entendimento do caimento, modelagem.
Sabe outro fator que tem feito aumentar o movimento de trocas e devoluções? É que antigamente se comprava o útil, o estritamente necessário. Antes você comprava uma “calça de moletom” e certamente caberia, hoje em dia você pode comprar até um vestido de festa e grandes chances de precisar ajustar ou trocar.
“Estima-se que cerca de 2/3 dos consumidores verificarão a política de devolução de um ecommerce antes de fazer uma compra. Oferecer devoluções gratuitas é uma maneira de garantir que eles finalmente cliquem no botão de checkout.” - Shopify
Cria o problema, vende a solução
Alguns varejistas oferecem serviços de reparo e alteração, esperando que alguns pequenos ajustes evitem várias devoluções. A Ganni, por exemplo, fez uma parceria com o aplicativo de alfaiataria Sojo, para oferecer alterações sob demanda. Esse serviço não se limita a marcas que vendem vestidos de US$ 400; a Uniqlo também oferece alfaiataria na loja. Na esteira do problema, muitas outras franquias de “Costura Express” tem surgido pelo mundo pra resolver esses problemas de roupas desajustadas.
A tecnologia também tem ajudado as marcas a sanarem tais problemas e fazerem com que o cliente tenha certeza de que está comprando no tamanho certo. Ferramentas de dimensionamento, por exemplo, já são populares entre os grandes varejistas. A Gap usa o True Fit, que recomenda o dimensionamento com base no peso, altura, idade e tamanhos que o cliente usa de outras marcas. Já o ecommerce de luxo Ssense, usa as compras anteriores dos clientes para recomendar o dimensionamento com um serviço chamado Fit Predictor.
E falando de marcas que surgem para resolver um problema, a Happy Return surgiu pra unificar a logística reversa de muitas marcas. Com mais de 3.200 “Return Bar” espalhados pelos EUA, eles garantem que toda a burocracia de retorno leva 30 segundos, sem contato humano e com um respiro para o meio ambiente.
A Resposta das marcas
A melhor proteção contra devoluções é garantir que o cliente goste do pedido desde o início. Agora enquanto esse cenário ideal está longe de acontecer, um número crescente de empresas começaram a cobrar dos clientes por devoluções.
Em abril de 2022, a Zara colocou uma taxa de £2 no Reino Unido e uma de US$4 nos EUA para devolução pelos correios (itens devolvidos às lojas ainda são gratuitos). Em junho de 2023, a H&M seguiu o exemplo ao introduzir uma taxa de £2 para clientes no Reino Unido que não fazem parte de seu programa de associados para enviar de volta pedidos online.
Depois da mudança de duas gigantes do varejo, compradores indignados recorreram às mídias sociais para reclamar. Alguns contaram histórias sobre longas filas e serviço lento quando tentaram devolver itens às lojas da Zara. Outros argumentaram que a Zara deveria melhorar seus tamanhos e ajustes se eles fossem cobrar por devoluções.
Alguns aplaudiram a nova política, dizendo que ela levaria os consumidores a hábitos de consumo mais conscientes, visto que, o boom das devoluções veio justamente na esteira dos influenciadores, hauls e unboxings fictícios que serão devolvidos em seguida (juro!), com o intuito de criar conteúdo, engajamento e blá blá blá.
Em uma pesquisa da empresa de pagamentos Klarna, 57% dos entrevistados disseram que nunca comprariam de um varejista que cobrasse por devoluções.
Já a própria Amazon segue buscando driblar essa questão de outra forma e vem incentivando seus clientes a levarem suas devolução a um local físico, em parceria com grandes varejistas, como Kohl's, Staples ou Whole Foods (que é da própria Amazon).
Especialistas dizem que essas táticas devem ajudar a reduzir os custos de devoluções no curto prazo, mas que é muito cedo para dizer se a economia que elas proporcionam superará qualquer impacto negativo nas vendas.
O e-commerce de luxo Mytheresa desenvolveu uma tecnologia interna para encontrar clientes com maiores gastos, que compram com mais frequência e devolvem menos, e oferece a eles melhores opções de devolução. Do outro lado da ponta, o Mercado Livre também não cobra por devoluções, mas implementou uma estratégia diferente, incluindo a adição de mais locais físicos de entrega para itens devolvidos, expandindo assim seus pontos de contato com o cliente. Como uma heavy user do Meli, já deixei minhas devoluções perto de casa em lavanderia e até curso de idiomas rs e por mim tudo bem!
E recentemente tive uma experiência que me fez desistir da devolução (e ainda comprei mais hmmm kkkry). Há muito tempo não comprava na OFFPremium, mas recentemente comprei, não rolou e eu ia devolver, afinal, comprei por impulso, mas no último passo da devolução, do nada surgiu um pop-up sedutor me oferecendo 10% de desconto ao invés da devolução, o que eu prontamente aceitei.
Luz na sustentabilidade
Grandes empresas são capitalistas, obviamente só tem cifrões nos olhos e apenas buscam faturar mais e mais. Ainda assim realizam que o caminho da sustentabilidade é crucial pra saúde da empresa e do mundo. É importante falar do lado sustentável, do custo do combustível e até a escassez da mão de obra, mas como eles tem buscado frear essa questão?
De acordo com a empresa de tecnologia de devoluções Optoro, mais de 5 bilhões de itens no valor de cerca de US$ 400 bilhões são devolvidos todos os anos somente nos EUA. A empresa estima que isso gere cerca de 2 bilhões de kg de resíduos para aterros sanitários e 15 milhões de toneladas de dióxido de carbono.
Pensando no lado do consumidor, tem uma coisa que me incomoda quando compro na Amazon, por exemplo: compro miudezas baratinhas e aleatórias e cada uma chega em uma caixa e em uma entrega diferente. Mais ainda, no Mercado Livre, que tem um market place mais disseminado, cada compra é uma sacolinha diferente. Isso me dá uma certa agonia e gera a reflexão de por onde essas caixas andaram, ao invés de, ao menos, andarem juntas.
É o consumismo na cabeça e a mão na consciência ao pensar nessas tais pegadas de carbono que atravessam o país. Sei que tem a questão dos centros de distribuição, da logística, mas, sei lá, poderia ter uma opção da gente esperar e receber tudo junto. Às vezes temos pressa e queremos estar no Close Friends do entregador, mas tem vezes que dá pra esperar chegar tudo junto dias depois.
Pensamentos assim fazem parte da estratégia de inúmeras empresas de tecnologia e logística que vem buscando driblar os problemas pra encontrar o cenário perfeito entre o consumo e o ambiente. Ok, ok, a gente sabe que não existe, mas ainda assim eles tentam.
As compras on-line também têm um custo ambiental prodigioso, desde a embalagem até as milhões de entregas em domicílio. A maior parte do impacto ambiental da indústria da moda ocorre na fabricação, no entanto, as emissões de carbono associadas às devoluções são mínimas em comparação.
No ano passado, a gigante alemã Zalando, descobriu que mais de 60% de suas emissões eram resultado de entregas e devoluções de clientes. Segundo eles, “O Santo Graal da nossa estratégia é desvincular o crescimento econômico do impacto ambiental”.
Para varejistas como a Zalando, a embalagem é uma grande fonte de desperdício, mas o transporte é o maior impulsionador de emissões diretas. Reduzir o número de viagens entre os armazéns e as casas dos clientes e encontrar modos de transporte mais limpos é a chave para reduzir a pegada de carbono do comércio eletrônico. É um passo, dos milhões que se anda.
No final das contas - literalmente falando - me acho hipócrita em ser consumista e também pensar nesse aspecto da sustentabilidade, mas ao menos estou pensando, me educando e, claro, compartilhando com vocês! É mais um passo, dos outros milhões que se anda.
Beijos e boa semana,
Thereza